sexta-feira, 29 de abril de 2011

Crónica da (in)flexibilidade anunciada

A minha avó Leontinha fez na semana passada 83 anos. Pariu 10 filhos, os primeiros sozinha, os últimos com a ajuda da minha mãe, filha mais velha. Contam as duas com graça que aquilo já era natural: a mãe deitada ao lado da filha mãe velha (o meu avô tinha passado a fronteira a salto, para França, com o filho mais velho, e lá estavam), chegavam-lhe as dores e ela dizia com naturalidade: “vai chamar a tia Amélia”. Pronto, nascia mais um.
Não muito longe dali a cena era quase parecida em casa da minha avó Maria, aquela com quem sou (muito) parecida nas feições e na estatura. Ela própria era parteira. Pudera, deu à luz 13 filhos.
As duas trabalharam muito, a vida toda. Aquela de quem sempre fui mais próxima (por ser a neta mais velha, talvez), ainda trabalha. Está um Plantaram couves, semearam batatas, milho, feijões e abóboras. Sacharam e regaram. Colheram tudo. Passaram fome. Viveram muito. Mas quando no outro dia a minha avó percebeu a quantidade de horas que eu trabalho num só dia, as vezes em que deixo os meus filhos entregues ao pai ou às avós, e isto sem poder recompensá-los com dias seguidos de folgas ou outras formas, saiu-lhe um “tadinha da Paulinha”.
Ora aí está. Não é para terem pena, amigas. Cada uma de nós tem as contas do seu rosário para desfiar. É só para perceberem que aquilo me fez reflectir pelo caminho de volta a casa. Já não ia aqui falar da minha mãe, que ainda trabalha o dia todo agarrada à máquina de costura, e que ali criou duas filhas. Junto dela, ainda assim. Geriu sempre o seu tempo. A mim deu-me para a letras, num tempo destes. Sim, ainda sou uma sortuda, hão-de dizer-me. Porque estou empregada a tempo inteiro num jornal e me pagam o salário a tempo e horas todos os meses. Não me levanto de madrugada. Normalmente isso acontece entre as 7h30 e as 8. O meu filho mais velho já se veste, toma o pequeno-almoço sozinho e vai para a escola. A minha filha mais nova não me dá grandes trabalhos de manhã, desde que lhe ponha o dvd do mickey e lhe respeite o ritmo, mesmo que isso me faça roer até as unhas dos pés. Deixo-a na creche às 9h30. Entro no carro, faço 30 km e eis-me às 10 da manhã no meu jornal. Isto é a regra, feita de tantas excepções quanto a realidade obrigar. E aí, depende dos dias. Às vezes terminam a horas mais ou menos normais. Nesses, chego a casa entre as 19h30 e as 20 horas. Preparo o jantar (que o meu homem tem muitas qualidades mas na cozinha só sabe arrumar e comer), dou-lhe banho a ela, que me quer a mim porque sim e “o pai-só-sabe dar-banho-quando a mãe tá a tabalhar!”, jantamos, lambuzamo-nos de mimos e finalmente lá para as 22h30 tento deitá-la. Quer dizer. Deito-me com ela para a adormecer. É quando ele se deita também. O pai entretanto desceu para tomar café, e não tarda há-de subir com a minha bica pelas escadas acima. Para ver se eu consigo acordar e fazer tudo o que me falta, no meu doce lar.
Depois há as quartas de fecho de edição, em que chego a casa entre as 2 e as 4 da matina. É non-stop, nesses dias. Na manhã de quinta tento recompor-me. E por isso que optei por deixá-la a dormir numa avó. E há os trabalhos à noite, ao sábado e ao domingo, a que achamos muita piada aos 20 mas agora nem por isso. É verdade que ainda faço o que gosto, mas gosto cada vez menos disto.
Eis-me aqui. Paula Sofia Luz, 38 anos, casada, mãe de dois filhos, mulher do Daniel (que por ora está desempregado, depois de se ter visto obrigado a fechar a pequena empresa de publicidade que (o) mantinha há quase 14 anos. Jornalista. Uma agulha no palheiro da Economia, portanto. Perdi direitos e só ganhei mais deveres. E pressões que me esforço para não transformar em depressões. E o que me faz trazer este aperto no peito é olhar para o lado e ver a selva em que se transformou o (meu) mercado de trabalho. Mas isso dava outro post.
A mim ninguém me mandou nascer aqui, neste pobre país, tão permeável à desgraça que basta uma chuvada para lhe pôr as entranhas ao sol. Era sobre flexibilidade, o post, não era?

Sophis, nome de código

4 comentários:

  1. É sempre um prazer ler-te :). Não trabalhamos na terra, nem parimos 10 filhos... mas a verdade é que a tua avó tem toda a razão... "tadinha(s) da(s) Paulinha(s)".Os tempos nao estão faceis de facto.( e eu até sou uma optimista :S)
    Beijo

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  2. "neste pobre país, tão permeável à desgraça que basta uma chuvada para lhe pôr as entranhas ao sol"
    Tudo dito!!

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  3. Porque será que sinto que o nosso tempo é de retrocesso?........
    Retrocedemos em tudo!
    Nós tivemos que ir à luta e ficamos todas contentes porque já não eramos tratadas com o desvalor de antigamente, estavamos no mundo dos homens e do trabalho e isso é que é valentia....QUE GRANDE TRETA!
    Esquecemo-nos que o essencial é sermos nós proprios e que para isso não precisamos de destruir e descaracterizar-nos por dentro. Passamos a maior parte do nosso tempo a dar provas que tb somos, tb conseguimos, tb somos capazes, tb fazemos, tb...tb... e eu tb e eu tb e eu tb... Às tantas já nos perdemos....
    E os filhos? Tb estão neste rodopio frenético, mas sem a nossa companhia.
    Daqui a uns anos estaremos nós a precisar do aconchego deles e eles estarão assim como nós.

    Particularizando: eu depois do nascimento do meu filho consegui sair deste movimento frenetico, tem dias que não é facil, mas sinto vale a pena a mudança. Agora um Part-time Lovers seria o ideal.

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