O tema foi lançado no post "Por um mercado de trabalho mais flexível, part-time lovers, uni-vos!", da mãe que capotou.
Um assunto que me diz muito porque ainda não fez uma semana que deixei o meu emprego, sendo que um dos fortes motivos para a minha demissão foi precisamente a inflexibilidade de horários.
Quando fui admitida "venderam-me" a história de que sim, era obrigatório "picar o ponto", mas caso fosse necessário sair mais cedo ou entrar mais tarde para tratar de qualquer assunto pessoal, não havia problema, era só registar um pedido de "troca de horas" e estava tudo bem.
Mentira.
Assim que tive o meu segundo filho e com ele surgiram as baixas por doença, as idas às consultas, os atrasos porque há vomitados pelo caminho que, pasme-se, obrigam mesmo uma pessoa a dar meia volta, ir a casa, lavar a criança e a cadeirinha e tudo o mais porque entregá-la vomitada à escola e deixar o carro UM DIA INTEIRO fechado com restos de uma refeição mal digerida NÃO É OPÇÃO e, sim, pasme-se outra vez, isto faz uma trabalhadora, que até tinha saído cedo de casa, chegar ao trabalho atrasada - oh que estranho!... - assim que tive o meu segundo filho, dizia eu, tudo mudou. A flexibilidade anunciada esfumou-se rapidamente.
De notar que o meu trabalho não exigia horário fixo, já que era programadora: estar ali sentada no meu lugar num imenso, barulhento e mal climatizado open space ou estar sentada em casa num puff na varanda a apanhar sol com o portátil nas pernas ía dar ao mesmo - o que deveria interessar era o produto final (um projecto sem erros entregue a tempo e horas), e não a aparência.
Sim, a aparência. Foi-me dito na cara que chegar tarde "ficava mal" (nunca disseram que ser pouco produtivo ficava mal... sintomático) - o que se responde a isto?....
Mesmo os "chefes" sabendo que eu era mãe de duas crianças, que não tinha ninguém que pudesse ficar com elas (tirando o meu marido, mas como ele tem uma empresa, nem sempre podia ficar em casa em meu lugar, embora até tenha ficado umas quantas vezes), era chamada a atenção constantemente pelas ausências e chegaram até a colocar a pontualidade com um objectivo nos meus KPI's (o que iria influenciar depois a avaliação de final de ano e, por sua vez, a remuneração variável: o bónus anual).
O horário não era mau (9 - 17h30) mas ainda tendo que ir buscar as crianças (cada uma à sua escola) e ter mais de 15kms para chegar a casa, acabava na mesma a cair naquela rotina de: chegar, tratar das crianças, jantar, então-há-recados-da-escola-tens-tpc's-espera-aí-deixa-me-aqui-fazer-legos-com-o-mais-novo-um-bocadinho, e pô-los na cama. E recomeçava tudo outra vez no dia seguinte, a correr, sempre a correr.
Não me sentia presente para eles e, pior, no pouco tempo em que estavamos juntos à semana, eu ainda estava sob efeito do stress do dia e acabava a ter pouca paciência para eles. Defeito meu, sem dúvida, mas tivesse tido a hipótese de escolher o meu horário ou de poder fazer parte do dia ou da semana em regime de teletrabalho, tudo seria muito diferente.
Essas hipóteses estavam foram de questão, então saí.
Arriscarei agora em projecto próprio, em parceria com o meu marido. Perco em rendimentos, perco em segurança (se bem que, nos dias de hoje, trabalhar por conta de outrem já não é tão seguro assim...), mas ganho muito em disponibilidade (quer mental, quer de horários) para estar lá quando é preciso.
Há reunião com o educador/professor? Vou e fico até ao fim, sem correr, sem estar sempre a olhar para o relógio e sem ter de passar na secretaria a pedir a justificação da praxe.
Está um filho doente? Fico em casa a cuidar e a mimar, em vez de lhe enfiar uma colher de ben-u-ron ou brufen e entregá-lo(a) no infantário/ATL, a rezar para que não piore, com o coração completamente esmagado por ter de ir trabalhar.
Há uma exposição / festinha na escola? Vou ver ao vivo, sem ter de me contentar em ver o DVD uma semana depois....
Os dias estão mais compridos e eu agora consigo estar à porta da escola da mais velha quando toca para sair e já tenho o mais novo comigo, por isso ainda dá tempo de irmos a um parquinho durante meia hora antes de irmos para casa jantar.
O trabalho? Pode esperar e ser feito "fora de horas".
Não há salário que compense os laços que se reforçam, os colos que se dão, as memórias que se criam. Pena que os nossos políticos, os nossos empresários e gestores não saibam disto.
Pergunto-me às vezes: terão eles sido criados pela mãe, ou por uma empregada?... E os seus próprios filhos, como estão a ser criados?...
E que sociedade é esta, em que a família tem de ficar para segundo e terceiro plano (quantas famílias são obrigadas a isto devido aos seus baixos rendimentos e até ao acumular de vários empregos?...), em que as crianças crescem empurradas de estranho em estranho mal conhecendo os seus pais (e estes a elas, claro)? E que sociedade vai ser esta, quando uma geração inteira de crianças que cresceu assim desapoiada, crescer e ficar ela própria encarregue de perpetuar valores para a geração seguinte? Quais irão passar? Compaixão? Solidariedade? Ou individualismo? Ambição?...
Revolução social, precisa-se, diria eu...
Sandra Noronha
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