Caracterizada durante muito tempo por um acesso limitado à educação e à formação profissional, a oferta de mão-de-obra feminina tem vindo a alterar-se radicalmente.
Face às novas exigências dos postos de trabalho, as capacidades de comunicação e de responsabilização, consensualmente reconhecidas ás mulheres, deveriam abrir-lhes boas perspectivas no mercado de trabalho. Possuir as aptidões e competências requeridas não tem acarretado, de facto, o reconhecimento da sua qualificação. Na verdade, o processo acelerado de feminização quer dos sistemas de ensino e formação quer dos mercados de trabalho não tem conduzido à eliminação da segregação e da discriminação no trabalho e no emprego.
Os paradoxos da situação laboral actual das mulheres resultam, não apenas, do facto de estas transformações coexistirem com a perpetuação de uma cultura empresarial que lhes é fortemente hostil, mas também da radicação de uma concepção social do trabalho de produção e de reprodução que não se limita a conotar positivamente a esfera da produção e negativamente a esfera da reprodução, mas que, para além disso, associa naturalmente as mulheres a esta última.
Só assim se compreende que os novos modelos de gestão não estejam afinal a responder melhor às necessidades de articulação do trabalho produtivo e reprodutivo.
Uma vez que estes novos modelos enfatizam a importância dos aspectos relacionais e da qualidade de vida profissional e da vida em geral e a atenção dada às necessidades das pessoas, poderíamos esperar que as mulheres tirassem deles algum benefício. A ênfase posta na flexibilidade, na humanização das relações de serviço, na cultura relacional e na centralidade do tempo é algo que poderia facilitar a integração das mulheres numa nova cultura empresarial, já que elas se encontram, em regra, habituadas a realizar várias tarefas ao mesmo tempo, a coordenar os tempos de trabalho e de não-trabalho, a atender às necessidades dos outros e a cultivar e fomentar as relações afectivas e familiares.
Uma vez que estes novos modelos enfatizam a importância dos aspectos relacionais e da qualidade de vida profissional e da vida em geral e a atenção dada às necessidades das pessoas, poderíamos esperar que as mulheres tirassem deles algum benefício. A ênfase posta na flexibilidade, na humanização das relações de serviço, na cultura relacional e na centralidade do tempo é algo que poderia facilitar a integração das mulheres numa nova cultura empresarial, já que elas se encontram, em regra, habituadas a realizar várias tarefas ao mesmo tempo, a coordenar os tempos de trabalho e de não-trabalho, a atender às necessidades dos outros e a cultivar e fomentar as relações afectivas e familiares.
Estas potencialidades são, no entanto, torpedeadas no seu desenvolvimento, dado que as empresas tendem a oferecer um entendimento completamente diferente da flexibilidade. Para estas, flexibilidade significa alongamento da jornada de trabalho, às vezes com trabalho suplementar não-remunerado, disponibilidade total por parte dos trabalhadores para responderem às exigências da ‘produção’ e, fundamentalmente precarização do emprego. Quem não estiver disponível por ter pessoas dependentes a seu cargo é pouco flexível e desmotivado.
O trabalhador flexível dos novos modelos de gestão tal como são levados à prática tem, portanto, que ser alguém que vive sózinho ou de preferência que tenha alguém que cuide si. Há mesmo empresas na Alemanha que só recrutam homens casados com mulheres que não trabalhem fora de casa (Müller, 1998).
Uma mulher candidata a um emprego, se se encontrar na faixa etária dos 20 ou dos 30 anos, é encarada pelos empregadores como uma mãe potencial, o que na concepção de muitos empregadores significa uma trabalhadora de fraca produtividade, elevado absentismo, alheamento e falta de empenhamento e de flexibilidade no trabalho. É de conhecimento comum que é uma prática corrente em Portugal, já que a lei proibe o despedimento de mulheres grávidas, exigir-se às trabalhadoras que não engravidem durante a vigência dos contratos de trabalho. Já se registaram casos em que, inclusivé, as entidades patronais alegaram justa causa no despedimento de trabalhadoras que não se sujeitaram às regras impostas.
Outro indicador que aponta no mesmo sentido é constituído pelo facto de as denúncias de discriminação que chegam à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) envolverem na sua maioria mulheres grávidas ou em licença de parto.
Em contraste com a situação descrita, verifica-se a preferência das entidades patronais pela contratação de homens casados, de preferência com filhos (e, se possível, empréstimo bancário para aquisição de casa própria), porque em sua opinião estes são mais responsáveis e mais estáveis. Ao contrário do que acontece com as mulheres, o seu papel de provedor da família torna-os melhores trabalhadores. Assim, um modelo que em teoria poderia favorecer a diminuição dos índices de segregação sexual das estruturas de emprego acaba por ter como efeitos perversos a perpetuação ou mesmo o agravamento das condições de trabalho e de vida das mulheres.
Não deixa de ser paradoxal que, sendo comum afirmar-se que a legislação laboral é bastante rígida, salvaguardando os direitos dos trabalhdores, Portugal apresente os mais elevados índices de flexibilidade externa do mercado de trabalho da UE, pelos quais são em especial responsáveis os contratos a termo certo e o trabalho temporário (Quaternaire, 1997).
Nesta dimensão da articulação entre trabalho remunerado e não-remunerado situa-se precisamente outro dos paradoxos da situação das mulheres em Portugal. Sendo das que mais se inserem no mercado de trabalho, são também das que contam com menos ajuda, já nem se diz partilha, das tarefas domésticas por parte dos homens. Os resultados de todas as sondagens disponíveis apontam unanimemente para uma participação dos homens que se cifra em torno dos 26% (quando é o homem a responder) e dos 3% (quando é a mulher quem responde) em tarefas como cozinhar, lavar a loiça, passar a ferro, arrumar e limpar a casa.
Num inquérito que realizei a 1520 pessoas de ambos os sexos que vivem em relação conjugal (formal ou não) e em que ambos os elementos trabalham fora de casa, as tarefas que mais frequentemente são citadas pelos homens como sendo da sua responsabilidade são: conduzir a família em viagem (81%), lavar e cuidar do carro (75%), pequenos arranjos dos equipamentos domésticos (66%), ir às repartições públicas (54%), fazer os churrascos (52%), levar as crianças a espectáculos desportivos (51%) e engraxar os sapatos (50%). O que ressalta desta lista de tarefas é, sobretudo, a sua descontinuidade, mas também a sua distância relativamente à casa. O seu carácter esporádico resulta de não possuirem uma periodicidade imposta. Os espaços em que se desenrolam, a estrada, o quintal, a garagem, a repartição pública, o estádio, são exteriores à casa (com a eventual excepção dos arranjos ou do engraxar dos sapatos que, de qualquer maneira, não têm que forçosamente ser feitos dentro de casa, como o são o limpar o pó, aspirar, arrumar, etc.). Trata-se, em resumo, de tarefas que se cumprem fora de casa e cujos conteúdos não têm uma obrigatoriedade pré-estabelecida.
Podemos dizer que, em parte como corolário destas duas características, as tarefas realizadas pelos homens acabam por ter uma visibilidade completamente diferente das tarefas de cumprimento diário obrigatório que são da responsabilidade quase exclusiva das mulheres (cuidar das toalhas e das roupas de uso diário e planear os menus, para além do cozinhar, arrumar a banca da cozinha depois das refeições, etc.). "O trabalho de uma mulher nunca está feito" diz o ditado (apetece acrescentar "por um homem"), porque o ciclo das tarefas que o compõem é muito curto, obrigando por vezes à repetição das tarefas várias vezes ao longo do dia (cozinhar, pôr a mesa, lavar, limpar e arrumar a louça).
Em entrevistas com mulheres operárias fabris, pude aperceber-me que o mesmo fenómeno de invisibilidade toca o destino dos seus salários. Estes destinam-se ao "governo do dia-a-dia", à compra dos bens de consumo imediato (alimentação, vestuário, calçado). Há uma despesa fixa que tende a sair do seu salário — a mensalidade da ama/creche/infantário/colégio, etc. — , como se tivesse que ser penalizada por exercer uma profissão.
Em oposição, ou de forma complementar, dirão alguns, o salário dos seus companheiros destina-se, depois de ele tirar para si a parte a que se acha com direito, sobretudo ao pagamento de despesas fixas (especialmente a renda ou a amortização do empréstimo da casa ou a prestação do automóvel ou da câmara de vídeo, etc.).
O salário da mulher desaparece na voracidade do consumo quotidiano, o do homem permanece bem à vista, incorporado nos bens de consumo duradouro. Em caso de divórcio, ele reivindicará a posse daqueles objectos, pagos com o ‘seu’ salário; ela perguntar-se-á em vão para onde foi o seu salário.
Da diferente natureza das tarefas realizadas pelas mulheres e pelos homens, resulta a grande diferença do tempo consumido por umas e outros com o trabalho doméstico. Objectar-se-á que isso se deve ao facto de os homens trabalharem mais horas. Ora, os dados de que dispomos quanto à ocupação do tempo no trabalho doméstico não corroboram esta ideia. Se existisse alguma correlação entre o número de horas que as mulheres e os homens trabalham e o nível de responsabilização do trabalho doméstico, então os homens portugueses deveriam estar entre os que mais tarefas domésticas desempenham e, no entanto, o seu nível de participação, avaliado em estudo recente, coloca-os no penúltimo lugar entre os países da UE, imediatamente antes dos seus vizinhos de Espanha, país em que se verifica a mais baixa taxa de actividade feminina.
Para entender este paradoxo, no caso português, é necessário ter em conta que vivemos até há pouco mais de vinte anos numa sociedade regulada por uma ordem jurídica que fazia do trabalho doméstico uma obrigação legal das mulheres.
O tradicionalismo do imaginário socio-cultural de muitos sectores está bem expresso em algumas sondagens sobre os comportamentos femininos considerados desejáveis, de acordo com os quais a maioria dos inquiridos não perdoa a uma mulher a infidelidade, que fale e se vista mal e que fume ou que beba alcool (Expresso, 26 de Novembro de 1994).
No inquérito sobre a divisão sexual do trabalho acima referido, mais de dois terços das pessoas inquiridas ainda declaram que em seu entender há profissões mais indicadas para mulheres e para homens (70% dos homens e 61% das mulheres). Mas a questão é muito mais profunda e, embora com uma acutilância especial em Portugal, este paradoxo está presente em todos as áreas geográficas e quadrantes sociais.
Os estudos feitos mostram que apenas a variável ‘período de afastamento da mulher de casa’ tem um efeito determinante na quantidade de trabalho doméstico realizado pelos homens, não sendo portanto relevante saber se a mulher trabalha mais ou menos horas, se ganha mais ou menos, se o homem está ou não desempregado (Müller, 1998). Somente face à ausência da mulher, o homem passa da condição líquida de recebedor à de prestador de cuidados. A esta luz, talvez possamos pôr como hipótese que as mulheres portuguesas se movem menos, de forma autónoma, quer dizer, em Portugal serão menos frequentes as situações em que as mulheres estão afastadas de casa. Hipótese perfeitamente possível se tivermos em conta a fraca mobilidade que caracteriza de um modo geral a mão-de-obra portuguesa, demasiado limitada nos seus movimentos por uma grande prevalência da posse de casa própria e, sobretudo, um mercado de habitação praticamente inexistente desde que as rendas foram congeladas, durante os anos 70.
Numa sociedade sem igualdade material, o paradigma jurídico da igualdade formal gera políticas paradoxais.
É sem dúvida uma lógica equivocada e paradoxal que leva à presunção de que os homens partilham equitativamente as responsabilidades dos cuidados prestados no âmbito da família. No Art.º 68.º da Lei Constitucional (nº 1/89 de 8 de Julho) pode ler-se " 1 - Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantias de realização profissional e de participação na vida cívica do País; 2 - A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes; 3 - As mulheres trabalhadoras têm direito a especial protecção durante a gravidez e após o parto, incluindo a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias".
Na versão de 1976, a constituição falava na insubstituível acção materna junto aos filhos e no valor social eminente da maternidade.
Na revisão constitucional de 1982, a paternidade foi colocada lado a lado com a maternidade, equiparando as exigências do papel do pai às do papel da mãe, para efeitos de integração profissional e cívica.
Quando se sabe que afinal apenas uma minoria dos homens partilha as tarefas domésticas ou a prestação de cuidados devidos às crianças e outros dependentes, a igualdade formal que não é complementada com estruturas de apoio à família, na verdade, agrava as desigualdades entre os sexos no plano material.
Se é verdade que a ordem jurídica instaurada nos anos setenta se funda numa concepção de cidadania universalista, ao considerar homens e mulheres igualmente produtores e reprodutores, está a compactuar e, provavelmente, a reforçar práticas sociais desiguais e injustas.
Por Virgínia Ferreira Socióloga, Faculdade de Economia da Universidade | |
Muito pertinente. O último parágrafo diz tudo, aliás, é exactamente deste tipo de flexibilização que nos queremos demarcar, certo?
ResponderEliminarClaro.
ResponderEliminarMas é interessante ler todo o link, é uma analise sociologica bastante completa da situação.
gostei muito e acho que toca num ponto fulcral: a flexibilidade que as empresas hoje oferecem na generalidade é mais no sentido de conseguirem que o empregado esteja sempre disponivel para trabalhar, tornando-se este um trabalhador mais precário. Não é decididamente este tipo de flexibilidade que pretendemos! filipa
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