segunda-feira, 2 de maio de 2011

O trabalho é uma troca e deve ser saudável e feliz

Há dois anos, mais coisa menos coisa, pus fim a uma pretensa carreira no jornalismo, sobre a qual não me vou perder em conjecturas. Creio que o motivo mais forte seja esse maldito estado de amor sem retorno, que desgastou de tal forma a relação ao ponto de, pura e simplesmente, já nada existir entre nós. Eu sou assim. Demoro a desiludir-me, mas quando o ponto final surge, é redondo, pesado e, quase sempre, definitivo. Nessa profissão, em que se exige uma relativa disponibilidade, vi-me muitas vezes confrontada com um duelo desigual entre dar o melhor de mim a uns e a outros. É que para mim, a realização pessoal vem muito do trabalho. Assim como produzir, fazer parte. Somos todas diferentes, neste capítulo. Sem mágoas, apercebi-me que poderia continuar a dar o meu 100%, se este 100% fosse entre as 9h00 e às 18h00. Para uns, poderia parecer pedir muito; na minha óptica era lógico e útil. Era uma questão de compartimentalizar os trabalhadores e colocá-los nas áreas/ horários em que mais produzem. Não me consideraria beneficiada se assim tivesse sido. Mas não foi. Nunca é. Sem rectaguarda familiar, sei muito bem que as faltas para estar com os meus filhos eram toleradas, mas davam de mim a imagem real: eu era mãe. Uma mãe precária, a recibos verdes. Com tudo o que isso implica. Das licenças da maternidade, sentia a pressão que eu própria me impunha e aquela que sentia como uma camada densa, a pairar em cima de mim. Pediram-me que estivesse apenas dois meses de licença. Eu fui até aos três e o pai, que pode, cumpriu o resto. Mas o pior eram as doenças. Os meus filhos, cada um anos diferentes, adoeciam muitas vezes. Cheguei a fazer entrevistas e a escrever textos com eles ao colo, porque não queria deixar o jornal sem notícias que eu considerava importantes. Sim, tenho muito brio. Brio no que faço e respeito pelo órgão de comunicação social que me empregava. A dada altura, quando a crise chegou em força e me levou amigos, atirados para a rua de qualquer maneira, a pressão, que já era muito, foi recaíndo sobre mim. Era preciso dar mais. Dar cada vez mais e sem contrapartidas. E agradecer, agradecer muito pelo pouco que tinha, porque havia colegas em situação pior. Este tipo de psicologia nunca funcionou comigo. Os meus filhos e a minha família mereciam melhor. Mereciam que eu me respeitasse, primeiro a mim, depois ao mundo. Afinal, eu estava a fazer sacrifícios para quem e porquê? Por perfeccionismo? A esta altura, isso já não chegava. Eu queria, ó utopia, ser valorizada, aumentada, como todos os trabalhadores. E queria, sobretudo, não sentir que estava a falhar redondamente quando a minha família ficava em primeiríssimo lugar. Eles nunca mereceram menos do que isso.Senti a pressão do fracasso (o que eu me auto- induzia e o que os outros me faziam sentir) em força no internamento da mais nova no hospital, durante uma semana. As pessoas compreendem, mas ficam com aquele tom de “se tem de ser...”. O trabalho é uma troca e deve ser saudável e feliz. E eu já não era feliz. Já nem sentia remorsos quando, numa urgência, me mandavam para Espanha em trabalho e eu recusava. Simplesmente, não podia ir sem fazer planos com antecedência. Acho que o fim da relação foi quando contaram as peças jornalísticas que eu tinha feito no mês e alguém insinuou que eu andava a produzir menos (que é feito da qualidade, em detrimento da quantidade?). Comecei, por fim, a perceber que ninguém estava interessado em bons trabalhos. Era mais o reino do fax, ao estilo de fábrica de letras, em que se premiavam os medíocres. Vim embora. Vim embora de cabeça bem alta e passei os dois piores e mais intensos anos da minha vida. O mundo continuou. O jornal também. Não tenho saudades ou remorsos. Em Setembro de 2010 criei o meu próprio negócio. A patroa é exigente, mas é justa. É perfeccionista como sempre. E pode trabalhar doze horas non stop se for preciso, mas, no dia seguinte, se lhe apetecer pode ficar com os filhos só para os amar ou levar ao médico. Assim, com justiça.

Luz de Estrelas/Isabela Sousa

www.projectcyrano.blogspot.com

2 comentários:

  1. como sempre Isa, consegues transmitir daquela forma mais real aquilo que muitas de nós sente cá dentro e que custa a sair em palavras... é mesmo isso...

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  2. Sabes Isa e por essa e por outras parecidas que eu após o nascimento do meu filho decidi deixar de exercer a minha profissão.
    Ao longo destes 4 anos nunca me arrependi e confirmo cada dia que passa que eu dava muito mais do que a profissão, clientes, colegas mereciam e exigiam. Eu fazia-o por vocaçao e devoçao mas já não era o bastante para me fazer feliz.
    Neste momento sinto muita falta exercer uma profissão, ando a revolucionar para ver se as mentalidades mudam o suficiente para as portas ou janelas se abrirem.

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